quinta-feira, 11 de abril de 2024

"A queda do céu", excerto

 Eles dormem sem sonhos, como machados largados no chão de uma casa. Enquanto isso, no silêncio da floresta, nós, xamãs, bebemos o pó das árvores yãkoana hi, que é o alimento dos xapiri. Estes então levam nossa imagem para o tempo do sonho. Por isso somos capazes de ouvir seus cantos e contemplar suas danças de apresentação enquanto dormimos. Essa é a nossa escola, onde aprendemos as coisas de verdade. (Kopenawa & Albert: 2015, e-book)

terça-feira, 9 de abril de 2024

Niilismo hoje - curso de filosofia

Na minha tese, brinco que o niilismo virou o último lugar de fala do homem-branco-hétero-cis. Seria apenas uma blague se o modo de pensar desse personagem, que se acha a maioria, não estivesse ainda no comando do mundo atual. Por isso que o niilismo ainda é contemporâneo.


Talvez não o niilismo da falta geral de sentido, que é o modo mais comum de entendê-lo – ou não apenas esse. Mas uma busca incessante para encontrar um fim para a vida, mesmo que seja o fim da vida. E estão aí religiões castradoras e trabalhos entediantes que não me deixam mentir.

Como não ter um sentido gera muita angústia, e podemos perceber isso em pessoas que sofrem de depressão, aqueles que acreditam nos paradigmas de sucesso do mundo contemporâneo precisam encontrar algo para dar um motivo para as suas vidas. Mesmo que seja um sentido asfixiante.

Nada contra saborear pequenas vitórias no cotidiano – e essa é provavelmente uma das formas de sobreviver nesse mundo –, nem contra certas concessões que devemos fazer para continuar funcionando enquanto a ~~revolução não vem e tudo mudará. Mas certas escolhas são derrotas dadas, antecipadas.

Quando optamos por uma vida em prol unicamente de reconhecimento externo, em vez de buscar realizar nossos desejos mais íntimos, estamos bem perto de cometer um longo e sofrido suicídio. E essa morte em vida é uma das formas mais simples de definir o que é esse niilismo hoje.

Por isso que é comum em diversos filmes bem populares que um personagem quando se descobre à beira da morte comece a, finalmente, viver tudo aquilo que ele sempre quis viver, mas nunca teve coragem para tal. Ironicamente, apenas ao fim da vida, que ele reconhece o seu valor.

Vamos falar sobre esses e outros temas correlacionados no meu curso Niilismo hoje, que será realizado na Acaso Cultural, uma casa de cultura que começou a funcionar numa construção histórica linda em Botafogo. Inscrições aqui.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Wordsworth, The Tintern Abbey Ode

 … And I have felt

A presence that disturbs me with the joy

Of elevated thoughts; a sense sublime

Of something far more deeply interfused,

Whose dwelling is the light of setting suns,

And the round ocean and the living air,

And the blue sky, and in the mind of man:

A motion and a spirit, that impels

All thinking things, all objects of all thought,

And rolls through all things. Therefore am I still

A lover of the meadows and the woods and mountains.

….

Wordsworth: "The Tintern Abbey Ode"

quarta-feira, 20 de março de 2024

'Daquilo de que somos feitos', Ádamo da Veiga

Em geral, não gostamos de admitir para nós mesmos certos afetos, sentimentos, impulsos que consideramos ruins. O ressentimento é desses. O livro do Ádamo da Veiga, Daquilo de que somos feitos, mostra porém que independente da nossa vontade, essas paixões tristes nos compõem -- a todos.

O livro pode ser comprado aqui

A obra conta a história de um professor de Filosofia, gay e obeso, que vive remoendo as muitas possibilidades de vida que ele poderia ter tido e nunca encarou. Um dia, o fatídico dia em que toda a ação se passa, ele vai viver uma situação extrema que torna as coisas ainda piores.

Antes de continuar, um disclaimer: Ádamo é um grande amigo e a obra foi carinhosamente dedicada a mim. Então essa resenha não é exatamente isenta. Eu encaro essa dedicatória, contudo, não exatamente ou apenas como uma homenagem: mas porque eu sou "especialista" em ressentimento.

Dito isso, podemos voltar ao livro, que é narrado em um fluxo de consciência paranoico, que emula o pensamento repetitivo desse professor que quer começar uma vida nova, se cuidando mais e valorizando suas relações, mas não consegue sair do lugar de reclamações constantes.

Apesar de começar com a mencionada cena extrema - um ex-aluno invade sua aula com uma arma, sequestra a classe e fala que vai matar todos -, "Daquilo..." fala mais sobre os ressentimentos do protagonista e das pessoas ao seu redor. Inclusive, claro, o tal ex-aluno.

O lançamento oficial ocorre dia 13 de abril

Não sobra para (quase) ninguém. A ex-namorada feminista do aluno-problema? Ressentida. Um tio malandro do protagonista? Ressentido. Os colegas professores? Todos ressentidos. Só não são ressentidos aqueles personagens sobre quem o protagonista fantasia.

O grande mérito do livro, assim, é mostrar a arapuca em que nos metemos quando queremos mais parecer justos do que ser justos. O ápice aliás é uma reunião dos professores para saber se expulsam ou não o então aluno. O resultado já sabemos desde a primeira página do livro. Mas...

As boas intenções dos personagens realmente bons não os livram de cometer injustiças em busca de uma vingança em formato de reparação histórica que, em vez de transformar estruturalmente a origem do problema, acaba por apenas desaguar o ódio acumulado por gerações. 


Em vez de in dubio pro reo, devemos julgar aquele arquétipo como representante da sua estirpe. Aliás, esse é outro trunfo do livro: os personagens, salvo exceções importantes no livro, não têm nome: são padrões que conhecemos, apenas exagerados. Em uma palavra: são caricaturas.

"Daquilo de que somos feitos" mostra o quanto estamos afundados na lama do ressentimento, esse afeto reativo que nos torna fracos, e que essa lama, se não elaborada e transformada em um adubo, pode fermentar para um movimento que destrói nossas bases sociais. Como nós bem sabemos.

terça-feira, 19 de março de 2024

Nova Iguaçu, a Laranja mecânica

 Como comentei com um amigo e ele não sabia, vim aqui fazer meu dever de iguaçuano nascido-e-criado na cidade e explicar por que o uniforme do Nova Iguaçu Futebol Clube é laranja - talvez sirva para alguém.

[Killer Bill depois de marcar contra o Vasco]

A explicação é simples: Nova Iguaçu, essa megacidade de quase 800 mil pessoas, a 24o mais populosa do país, a maior em extensão da Baixada, não é conhecida só por conta da Fani e o seu urru, mas por ter sido uma grande produtora de laranjas até o meio do século passado.

Minha mãe, nascida no Jardim Botânico mas que foi morar na cidade na década de 1950 por conta de tretas familiares, dizia que a cidade tinha um cheiro encantador de laranja que dava para sentir até da estação de trem.

Confirma o site da prefeitura da cidade:

"No século XX, a principal atividade... passa a ser o plantio de laranjas. Os pomares de Nova Iguaçu se estendiam por toda a Est. de Madureira, Cabuçu, Marapicu, alcançando também Itaguaí. Na época, Nova Iguaçu ficou conhecida como 'Cidade Perfume' por causa do cheiro das frutas"

De Nova Iguaçu saíram [quase] todos os outros municípios do que hoje é considerada a Baixada Fluminense: "Nova Iguaçu perdeu Duque de Caxias (1943), Nilópolis e São João de Meriti (1947). Nos anos 90, foi a vez de Belford Roxo e Queimados (1990), Japeri (1991) e Mesquita (1999)".

Do passado de laranjas, ficou pouca coisa, como um mural sobre o supermercado onde eu ia comprar sempre leite, pão ou farinha para a minha mãe. O supermercado mudou de lugar e um banco agora o ocupa o espaço. O mural continua.

[peguei a imagem no google maps]

E, claro, a camisa do time de futebol que está na final do Campeonato Carioca deste ano. Por essas e outras que eu posso dizer que nessas partidas contra o Flamengo, sou Fluminense e Nova Iguaçu desde criancinha.