sexta-feira, 14 de março de 2008

Com juízo e justiça

Conversei esta semana com Maria Augusta Ramos, diretora de "Justiça" e "Juízo". Publicamos uma materiazinha pequena, com algumas informações. Um amigo sugeriu publicar a íntegra. Copio abaixo. Vai dar um bom trabalho terminar de ler tudo. Ótimo para passar o tempo até o próximo post.

I) Por que voltar ao tema justiça?
Porque eu curti muito fazer “Justiça”. Não que tenha sido fácil fazer, porque é uma realidade muito dura e em “Juízo” é ainda mais. Mas eu achei o filme necessário. E eu achei que a “Justiça”, as audiências, o teatro da Justiça me possibilita fazer o cinema que eu quero fazer. Sem entrevista, um cinema de observação. E o meu trabalho tem mais interesse pelos relacionamentos humanos, as relações sociais. E, com a Justiça, você não precisa fazer as coisas acontecerem.

II) Documentário “não-jornalístico”?
Porque é o meu barato. Eu estou interessada nessas relações humanas. Retratar as relações sociais, as relações humanas. Como o meio influencia (as relações).

II.I) Intervenção:
Não é só uma questão de interferência. Eu também, por um lado, existe também um, eu não quero intervir ali porque, a mim, me interessa, retratar isso, esse relacionamento em si, as pessoas em si convivendo com esse meio. Como eles convivem com nesse ambiente, no caso, que é o universo da Justiça, ou o universo social da sociedade brasileira. Os dois filmes, mal ou bem, abordam. A questão da luta de poder...

III) Reflexão do público
Por um lado um sinal de respeito, por outro tem uma razão estética, de levar o público a uma reflexão. É olhar para aquilo que está se passando na tela e refletir sobre o que está vendo. É claro que eu manipulo o tempo todo. Mas há níveis de manipulação. Eu acredito que não traz, não interfira, não traz as questões prontas. E eu nem tenho como explicar, eu não sei. Porque o filme para mim, quando eu começo a filmar, é uma viagem de descoberta. Eu não vou fazer “eu quero dizer isso ou aquilo”. E nem no final, eu sei exatamente o que eu quis dizer. Eu acho que o barato é, justamente, deixar que a realidade fale por si só. E que o público veja muito mais do que eu, cada um veja um pouco o que quer ver...

IV) Sentir o filme.
Eu aprendi tanto ao fazer o filme que essa questão... Nem o “Justiça” nem o “Juízo”, se propõe a informar como o sistema penal no Brasil funciona, mas eu acho que também é importante a gente sentir. Chegar ao público também não só apenas da via da reflexão, mas se colocar um pouco no papel daqueles personagens.

V) Personagens à vontade
Porque elas se acostumam com as câmeras. As audiências são tão tensas, do lado dos réus e dos familiares que eles só estão interessados na sentença, no que a juíza vai dizer. No caso dos personagens principais (de “Justiça”), fiquei muito amiga das pessoas.

VI) Filmes bem recebido pelo Poder Judiciário,
O “Justiça” foi bem recebido pelo Poder Judiciário, pela ala mais progressista dos magistrados. Tanto o “Justiça” como o “Juízo” não apontam o dedo para quem é o culpado. Eu acho que é uma tendência que a mídia tem, “ah, esse é o culpado”. Acho que tudo é mais completo. Por que aquelas pessoas foram parar ali, etc. O Judiciário não pode dar conta das mazelas, da falta de, da precariedade de tudo, para tomar conta dos adolescentes, no caso do “Juízo”.


VII) Autorização para filmar as audiências
Quando eu fiz o “Justiça”, fui falar com os juízes... Primeiro eu passei cinco dias indo de uma vara a outra ouvindo audiência. Eu escolhi alguns juízes porque eu achei interessante. Eu fui a esses juízes e propus e falei para eles que não era, que eu não ia, de maneira alguma apontar o dedo, ou criar um “scapegoat” (bode expiatório). Mas justamente humanizá-los. Porque fica esse maniqueísmo entre juiz bom e juiz mau, que esse juiz é corrupto, que esse juiz não é corrupto. Mas que eu estava interessada em histórias, complexas, que é uma realidade complexa, queria humanizar tanto o réu, como o juiz, como o defensor, como o promotor.

VIII) Lugar dos personagens
Você queria estar na cadeira da juíza ali? Ninguém quer. Eu não quero ficar no lugar da juíza. E nem no lugar do agente do Degase. Porque a gente mete o pau... mas entra ali. Uma instituição que não tem recurso, que o estado não via com bons olhos, não existe uma vontade política para mudar a realidade do menor infrator. Essas pessoas que vão trabalhar nesses lugares, às vezes tem que levar lâmpadas. O sabonete, os pais que levam. Sabonete, os chinelos...

IX) Audiência maiores x menores
O ministério público da vara (da juventude e da criança) abraçou o filme. Eles (juízes, promotores e defensores) são muito mais amáveis com os menores.

X) Ficção
Estou trabalhando agora num roteiro, para fazer ficção, mas é uma ficção em que não vou usar atores profissionais. E é uma ficção muito próxima da realidade. Mas eu gosto muito de trabalhar com documentário. Me inspira muito a realidade.

XI) Como foi dirigir os atores
Eu sempre coloquei para eles, que eu não queria que eles atuassem. Queria que eles fossem eles mesmos. Que eles falassem aquele texto, que eles contracenassem com a juíza, que no caso era eu, como se eles estivessem sentados ali naquela cadeira. Então, sobre a questão do próprio texto. Eles não repetiam exatamente o mesmo que havia sido dito. Eles diziam a mesma coisa da maneira deles. Há situações, em que se você prestar a atenção, há respostas que são movimentos de cabeça. É um “não”, é um jeito, todos os trejeitos que são deles mesmo, são coisa que eu acontecer, eu disse: “é isso o que eu quero”. O Alexandre tem uma hora que ela pergunta e ele faz um trejeito dele. Foi isso que eu tentei. A gente trabalhou muito nisso com eles. O meu trabalho com eles, eu apontei para eles nessa direção. A maneira que eles fossem como eles realmente agem. Eu apontei para eles a maneira como eles faziam. Eu dizia “Faz assim, eu gosto, é você”.

XII) Credibilidade dos atores em um documentário
Isso tem dois aspectos. Primeiro é esse trabalho com os meninos, para os meninos serem eles mesmos. E segundo o fato dos meninos serem de realidades, absolutamente, quase iguais.

XIII) Realidades quase iguais
Alguém me perguntou se foi difícil achar esses meninos, eu acho que não. Esses meninos são talentosos, mas eu acho que não foi difícil e não seria difícil achar meninos que vivem a mesma realidade porque todos eles vivem. 75% das meninas adolescentes estão grávidas ou são mães, isso é muito assustador. Ali em Bangu, quase todas as meninas estão grávidas. Com exceção da Karina, que não quer ir embora, e de uma outra, todas elas tinha filhos. A Isabela, que foi a primeira, que tem o filhinho, que aparece, a irmã dela ficou grávida também com 13 anos. Foi muito assustador. Isso é que foi tão importante. Porque é uma realidade muito próxima. A gente às vezes não dá conta de que filmar no Padre Severino era uma barra. Eu dizia para eles, vocês vão encontrar gente da favela, até colegas de vocês e não pode falar nem cumprimentar. E obviamente eles encontravam e cumprimentavam. E isso foi importante. A consciência de que eles poderiam estar ali. E também para o público, que o público vê isso, essa realidade deles, está estampada no rosto.

XIV)Filme sobre uma geração
Acho que é sobre essa geração. E é por isso que eu quis mostrar o rosto. De jovens, de crianças, de adolescentes, de gente de comunidades carentes, que sabem, que tem consciência da miséria em que vivem, da falta de possibilidades, da perspectiva de vida, que se sentem explorados, que acham que têm mais direitos lhes é dado, e que ao mesmo tempo estão sedentos, que querem sair dali, que querem trabalho, que querem estudar. Que tem uma sede de possibilidades. Eu acho que isso está ali, porque tem isso mesmo.

XV) Rio
Eu gosto muito do Rio, meu pai é do Rio. Eu acho que para Brasília eu não voltaria. Eu adoro o Rio, eu adoro o jeito de ser do Rio. O povo do Rio, o carioca.

XVI) A violência no Rio
Ao ver o filme, o público vai ver uma violência constante. Eu acho que você sente a violência. Ela não é explícita, ela não é como “tropa de elite”, mas tem uma coisa da violência explodir ali. Pela violência que esses meninos vivem, pela opressão que eles sentem ali, naquele momento, a própria impotência da juíza, dos promotores, de nós de classe média, que, mal ou bem, é uma violência. A gente vive uma tensão. A violência implícita, porque eu não vi ninguém bater em ninguém, que é esses meninos terem a liberdade restringida. Qualquer presídio, pode ser aqui ou na Dinamarca, pode ser limpo ou não, existe uma violência nisso – não vou entrar no mérito se merece, ou não. Nesses lugares, você tirou a vida dessas pessoas. Isso é uma violência.

XVII) Más condições do Padre Severino
Eu e a equipe inteira, depois de passar um dia inteiro no Padre Severino, a gente ficava moído. Saía de lá... é muito pesado. E é pesado por causa da tortura? Não, nem precisa. E não era eu ou a gente ser cuidadosa. Eles não são preparados e querem ser preparados. A falta de recurso é generalizada. Imagina. Jogar a culpa nos caras....

XVIII) Pena de morte
Sou totalmente contra. Esse argumento de que “se aumentar as penas ou penas mais severas para os presos, a criminalidade vai diminuir” é uma besteira. Já foi provado estatisticamente que não funciona. Os EUA têm a maior população carcerária do planeta. Inclusive você tem 73 adolescentes que estão cumprindo prisão perpétua nos EUA. Porque em vários estados não existe Vara da Infância e da Juventude e eles são julgados como adultos. Isso para mim é um pecado.

XIX) reduzir a maioridade penal
Não vai adiantar de absolutamente nada. Você só vai colocar mais gente no presídio. Porque aí o garoto vai sair do Padre Severino e vai para Bangu. Eu acho que essa não é a solução.

XX) Solução
A solução é fazer com que eles não cheguem ali. É conter essa massa de acusados, de delitos. Enquanto eles chegam ali, tentar, porque não dá para mudar a sociedade de uma hora para outra, dar a possibilidade de ressocialização, que essas pessoas não precisam reincidir. Mas é isso que acontece. Ele sai sem a menor possibilidade de trabalho e aí volta. Você vai passar fome?

XXI) pessimismo
Às vezes a gente fica muito pessimista. Por causa da impotência, né?

sexta-feira, 7 de março de 2008

De coração

Um atacante se chama Washington, o outro, um nome dissílabo. No meio, um armador com sotaque espanhol. No gol, um goleiro com nome composto. Não é nada disso (Fluminense 1984) que você está pensando, é da versão 2008 que eu estou falando. Que, tirando o pó de arroz, essa tradição boba e vergonhosa, fez muito bonito na quarta-feira. Dodô fez o gol mais bonito que eu vi na minha vida inteira de tricolor, por exemplo.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Pensamento enquanto o trabalho não me exige

Mais uma falsa autobiografia foi revelada. "Love and consequences", que narraria a vida de Margaret B. Jones, é apenas uma obra de ficção. Como biografia, foi elogiada - reparem na contradição.

A questão acontece depois de "Misha: A memoire of the holocaust years", de Misha Defonseca, e "A million little pieces", de James Frey, que também deveriam ser relatos "verídicos" e se descobriram farsas - sublinho as acepções da palavra. Ou seja, há uma interação com o leitor. É quase uma instalação. Isso sem falar no J.T. LeRoy.

Tudo bem, hoje em dia eu até já admito que há mais interesse em obras que seriam espelhadas na realidade (seja lá o que isso quer dizer), ou em outros termos, ""biográficas"". E também é claro que eu entendo por que as pessoas ficam irritadas ao descobrirem o, digamos, engano.

Mas sugiro que essas pessoas, esses autores enganosos, estão fazendo o que todo escritor faz: mentir. E estão fazendo muito bem - pelo menos por um tempo.