terça-feira, 12 de novembro de 2013

Shiva, o deus de Nietzsche

Sempre me deixou encafifado aquela frase que Nietzsche atribui a seu Zaratustra no fragmento "Ler e escrever": "Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar". Principalmente porque antes disso, antes de sua obra-mor, ele já tinha anunciado a morte de Deus, na anterior, Gaia Ciência. Claro que o conceito de deus, que tinha morrido na Gaia Ciência não era o mesmo que Zaratustra-Nietzsche citou em seguida.

Se no livro anterior, ele estava abordando toda a falência de um modo de viver e pensar, que tinha sido baseado na moral judaico-cristã, que nos tinha dado os parâmetros do certo-errado, na frase de seu herói, ele está, muito provavelmente, fazendo uma citação. Está dizendo, não que ele gosta de dançar e está propondo que a dança se torne o parâmetro da vida, mas que, em primeiro lugar, a dança é sinal da vitalidade, de uma proposta da sensualização da vida, de um mundo em que o corpo está em primeiro plano, não atrás; e em segundo lugar, ele está falando de Shiva.

Shiva dançarino, em seu avatar Nataraja
Não é curioso que o homem que implicou com as religiões que ele encontrou - judaísmo, cristianismo, budismo - tenha falado essa frase no meio de seu livro mais famoso? Não há uma referência direta ao hinduísmo nesta passagem, nem a Shiva, mas Rüdiger Safranski, o cara que biografou apenas Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger, escreve assim na página 212 da edição brasileira do livro sobre o bigodudo:
Para Nietzsche, com a morte de Deus se evidenciam a audácia e o caráter lúdico da existência humana. E um além-do-homem será então aquele que tiver a força e a leveza para penetrar no jogo sempre igual do mundo. O transcender de Nietzsche vai nessa direção: para o jogo como fundamento do Ser. O Zaratustra de Nietzsche dança quando atingiu esse fundo; dança como o deus hindu do mundo, Shiva. E o próprio Nietzsche também haverá de dançar nu em seu quarto, pouco antes do colapso mental, nos últimos dias em Turim. Isso a dona da casa observou pelo buraco da fechadura.
Nietzsche, seguindo essa hipótese, diz que acreditaria num deus apenas se ele fosse Shiva. Mas quem é Shiva, na mitologia hindu? É um dos deuses da Trimurti, a principal trindade do hinduísmo. Um dos seus principais atributos, um dos seus ícones mais famosos, é o lingam, uma representação do falo. Shiva também é o deus das artes e da yoga. Mas Shiva é principalmente o deus da destruição, na trindade. Brahma é o criador, Vishnu o mantenedor, e Shiva aquele que destrói. Não soa algo muito parecido com o cara que dizia filosofar com o martelo?

Para os hindus, a ideia de um deus que destrói não soa despropositada, ou pessimista, ou ainda desesperadora: eles pensam que é necessária a destruição para que a roda da vida gire, para que se possa, novamente, construir e se manter. Shiva é aquele que dá a chance para as novidades acontecerem. É aquele que deteriora a matéria orgânica para adubar a terra e deixá-la apta para produzir novas vidas. Não seria possível pensar novas existências sem cogitar as formas de outas existências para montar essa nova.

Na Índia, apesar de existir uma civilização culta e milenar, era muito difícil encontrar um prédio muito antigo. Mesmo em Varnasi, considerada pelos indianos a cidade mais antiga ainda existente, os prédios são velhos mais por causa da falta de cuidado que pela idade. As construções de séculos de existência são normalmente de origem muçulmana. Porque, para os seguidores de Shiva, Brahma e Vishnu, o importante é sempre renovar, recriar, reconstruir.

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